O nosso director Renato Paiva, conjuntamente com outros especialistas de diversas áreas, foi convidado a participar numa reportagem do Diário de Notícias sobre a possibilidade dos alunos avaliarem os encarregados de educação.
Transcrevemos aqui a notícia que também pode ler no Site do Diário de Notícias
Um professor, um pediatra, uma psicóloga, um pedagogo e um representante dos pais respondem. Há quem veja a ideia com bons olhos, também há quem diga que é disparatada.
Quem lança a discussão é Alexandre Henriques, numa publicação feita no blog Com Regras: “E se os alunos avaliassem os encarregados de educação?” Na opinião do professor de Educação Física, os “desvios comportamentais e de desempenho escolar” das crianças “são, na maior parte das vezes, uma mera manifestação do fracasso/ausência familiar”. Por isso, explica ao DN, “em algumas situações podia ser feito um questionário na escola com algumas questões dirigidas ao acompanhamento dos pais ao estudo”. Da utilização da ferramenta, sugere, resultaria uma conversa com encarregados de educação, “feita de uma forma pedagógica e não para apontar dedos”.
Na publicação, que dividiu opiniões, Alexandre Henriques refere que as crianças são capazes “de exprimir o seu grau de (in)satisfação para com os progenitores” e dá um exemplo de um questionário brasileiro que permite “tirar boas ideias”. Entre outras, há questões sobre a frequência com que os pais brincam com as crianças, se param para conversar, se vão passear, se ensinam o que é certo e errado. “Há pais que não compreendem o que os professores dizem. Se viesse das crianças, talvez percebessem que têm de estar mais presentes. Claro que não seria uma coisa transversal. Se o professor achar que há abstinência familiar, porque não usar um mecanismo para comparar os resultados escolares com o desempenho dos pais?”, explica ao DN o coordenador do Agrupamento de Escolas n.º 3 de Elvas.
Será que os alunos devem avaliar o desempenho dos encarregados de educação? Que benefícios existem na utilização dessa ferramenta? E riscos? Para responder às questões, o DN falou com o pediatra Mário Cordeiro, a psicóloga Ana Gomes, o pedagogo Renato Paiva e o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, Jorge Ascenção.
“Era o que mais faltava”
“Acho disparate, da forma como é apresentado. O sistema pais-filhos não é uma democracia no sentido de ter de se avaliar o governo, ainda por cima através da escola. A escola que fique onde está, que se iniba de meter ainda mais na vida das pessoas e apenas o faça (o que, infelizmente, falha muito) quando se torna necessário, em situações especiais. Os filhos avaliam os pais e vice-versa através do amor, dos afetos e da sua relação. Era o que mais faltava a escola meter o nariz nas relações interpessoais. E quem? O diretor? O professor? O psicólogo da escola?”, diz Mário Cordeiro.
Na opinião do pediatra, “a escola pode dialogar com os pais, se sentir que algo pode ser melhorado ou, no limite, que se passam coisas estranhas ou graves, mas nunca através de ‘momentos avaliativos’ aos alunos sobre os seus próprios pais”. Para Mário Cordeiro, esse seria “um momento surrealista”.
Ana Gomes, psicóloga clínica e docente da Universidade Autónoma de Lisboa, tem uma opinião diferente: “Sinceramente, até achei interessante. Como mãe [de quatro rapazes de 10, 9, 6 e 3 anos], tentei refletir sobre isso. Se calhar era uma forma de percebermos algumas coisas que não imaginamos. É pertinente. Vivemos numa cultura e sociedade em que mal temos tempo para os nossos filhos. Se houvesse esse feedback, talvez repensássemos as nossas opções, escolhas, comportamentos. Muitas vezes, fantasiamos que estamos a corresponder às necessidades deles, mas até nem estamos.”
Na prática clínica, prossegue a psicóloga, depara-se com muitas situações nas quais “os pais dizem que dão tudo aos filhos e que não percebem porque surge um determinado comportamento, mas é porque têm uma visão reducionista do materialismo”. Se soubessem “o que falha, do que os filhos sentem falta, se calhar mudavam alguma coisa”. Enquanto mãe, Ana Gomes assume que ficou “com vontade de experimentar” fazer algo semelhante com os filhos. “O que será que diziam sobre mim? Posso ter a ideia que correspondo, mas isso não ser verdade.” Considera, no entanto, que “a escola é um ambiente sensível para essa avaliação”, que podia deixar os pais “muito comprometidos”. Portanto, afirma que seria necessário “pensar como se deve usar isto da melhor maneira em termos éticos”.
Existirá maturidade para isso?
Para o pedagogo Renato Paiva, poderá ser “perigoso” permitir que as crianças avaliem os encarregados de educação. “Considero que a maturidade das crianças para fazerem este exercício não seja a mais favorável. Aos olhos dos filhos, os nossos pais são sempre os melhores do mundo. Mas também achamos, muitas vezes, sobretudo quando somos contrariados, que os odiamos e são uns péssimos pais. A gestão emocional para avaliar é algo importante a ter em conta e não me parece que as crianças tenham essa capacidade”, diz ao DN o diretor da Clínica da Educação. A realizar-se uma aferição informal, indica, “o importante era fomentar a comunicação através de críticas construtivas, feedbackspositivos e de reforço”.
O autor da publicação, Alexandre Henriques, defende que, se os pais perceberem onde estão a falhar, será mais fácil mudarem comportamentos. No entanto, frisa Renato Paiva, “os próprios pais certamente sabem que há alguns pontos em que poderiam melhorar, mas nem sempre é simples. De uma forma genérica, os pais consideram ter pouco tempo para os filhos. Eles sabem disso, mas não é fácil fazer o tempo esticar quando a sobrecarga horária, emocional e física os deixam mais indisponíveis”. Por isso, considera que “fomentar a comunicação entre as duas partes será a base para que se possa melhorar, sejam os pais ou os filhos”, já que “a mudança de comportamento não pode existir se ambos estiverem ‘cegos’ à perspetiva do outro”.
Já o presidente da Confap, Jorge Ascenção, defende que o que é necessário “é melhorar a comunicação entre a escola e a família”. Relativamente à possibilidade de os alunos avaliarem os encarregados de educação, diz que “depende se o inquérito é bem ou mal feito”, uma vez que “não se deve inquirir crianças sobre a vida familiar de ânimo leve”. Para o representante dos pais, isso poderá ser “uma intromissão e procurar desculpas para o insucesso escolar”, pelo que teria “de ser feito por gente competente”. Além disso, frisa, “os alunos também devem avaliar o seu ambiente de trabalho”.
Vantagens vs. riscos
Mário Cordeiro não tem dúvidas: não há qualquer benefício em permitir que as crianças avaliem os pais. “Riscos: contaminar a relação pais-filhos, invadir a privacidade da família e banalizar queixas que, essas sim, podem ser importantes.” O pediatra refere que “a escola tem de estar disponível para observar, ouvir e escutar, não para perguntar e inquirir”. Além disso, alerta, “convém não esquecer que as crianças são manipuladoras e essa seria uma oportunidade ‘de ouro’ para ‘entalar’ os pais”.
Quem também não vê benefícios nesta prática é o pedagogo Renato Paiva. “Os pais, todos, têm questões na relação com os filhos ótimas e outras a melhorar. Mas há questões muito difíceis de resolver só por vontade dos pais. Como se sentirá uma criança, que idolatra os pais, quando ao preencher uma grelha de classificação e avaliação tem como resultado ‘os seus pais não estão a ser bons encarregados de educação’.” Este tipo de avaliação poderia “criar ruturas e atritos nas diferentes relações, o que não seria de todo o objetivo”.
Ana Gomes tem uma posição diferente, já que considera que os benefícios são maiores do que os riscos: “A partir dos 5 anos podia ser fiável. As crianças são tão sinceras que quase se tornam transparentes. Às vezes não têm é o meio de comunicação, a via para chegar aos pais.” Reconhece que podia servir para as crianças tentarem passar outro tipo de mensagem, que não corresponde à realidade, mas, “numa situação normal, pode ser bastante útil para os pais gerirem comportamentos”.
Faz sentido avaliar os professores?
Ao levantar a discussão, Alexandre Henriques reconhece, desde logo, que os professores estariam a abrir o flanco para serem avaliados pelos alunos, algo que, assegura, nunca o assustou. “Não me choca. Faço um inquérito no final do ano para perceber o que os alunos pensam, para que digam o que está menos bem. Não me parece que o caminho seja fazer disso uma obrigatoriedade, mas é preciso ter humildade para ouvir”, justifica.
Para o pediatra Mário Cordeiro, “um bom professor pede aos seus alunos sugestões, ideias e uma avaliação de desempenho, se for bom e humilde, e se tiver uma boa relação com os seus discentes”. Mas não precisa de um questionário. “Faz debates, procura sugestões, críticas, ideias, comentários e melhora, a menos que seja daqueles, que os há muitos, que pensam que sabem tudo, que são perfeitos e que todos os alunos é que estão errados… mas, para esses, não haveria sistema avaliativo que chegasse.”
Se o feedback for orientado de uma forma construtiva, Renato Paiva considera que “daria aos alunos a oportunidade de se expressarem e dizerem o que para eles funciona melhor e de que forma os professores estão ou não a conseguir chegar até eles” – o que lhe parece benéfico.